Por: Alexandra Guțu e Rita Coelho
Sinopse: A história corresponde a um episódio autobiográfico que, em resposta, subverte a famosa peça Mãe Coragem de Bertolt Brecht. Trata-se da história da mãe, Senhora Tabori, sobrevivente húngara das deportações em massa de Budapeste para campos de concentração ocorridas na fase final da Segunda Guerra Mundial, e que é contada através da personagem do filho, com ajuda da própria mãe. A peça segue um inegável humor negro e uma narrativa repleta de episódios surreais que caminham lado a lado para nos trazer o absurdo desumanizante do Holocausto. Presa por dois polícias septuagenários, enfiada num vagão de gado, e assistindo à morte de perto, é no confronto com um peculiar oficial alemão que, fazendo uso de uma coragem tão ingénua quanto certeira, esta mulher desafia o seu destino. George Tabori, com este diálogo mãe-filho, consegue a proeza de tornar vivas perante nós as imagens daquela crueldade inesquecível sem nunca prescindir de uma poética subversão humorística que acentua uma visão cínica da condição humana.
No âmbito da 7ª edição do Festim «Esta Noite Grita-se», estivemos presentes na Fábrica do Braço de Prata, no dia cinco de novembro, para a leitura da peça Coragem de Mãe de George Tabori, interpretada por Filipe Abreu, Elsa Valentim, Miguel Maia, Pedro Luzindro, e com o acompanhamento musical de Sebastião Martins.
George Tabori, nascido no seio de uma família judia, relembra ao público a não esquecer os horrores do Holocausto. Através das suas histórias, baseadas em eventos verdadeiros ou inteiramente inventadas, Tabori marca a sua posição ativa contra o antissemitismo, denunciando, tanto quanto possível, a ação levada a cabo pelos nazis.
Na peça Coragem de Mãe, Tabori dá-nos a conhecer um dos seus heróis: a sua mãe, que conta a experiência de ser presa e deportada para Auschwitz, ou como ela lhe chama, a “padaria judaica”. Não é uma heroína qualquer, segundo a caracterização convencional de herói, mas, por obra do acaso, consegue escapar à morte para contar a sua história. Por oposição ao tom usualmente empregue nas histórias sobre os atrocidades antissemitas, George Tabori toma a via do humor, do cinismo e da ironia para descrever a experiência da mãe.
O público ri, mas é imediatamente trazido de volta à realidade, acordando da ilusão disfarçada pelo humor do qual se serve. A história revela-nos uma realidade, parecendo, no entanto, querer afastar-se dela; como se, vista de fora, fosse uma comédia e não uma tragédia. A dado momento, ao chegar a Auschwitz, alguém pergunta à mãe de Tabori por que razão lá se encontrava, ao que ela responde “O que é que lhe parece? Férias?”. O público ri, e a chuva começa a cair, ilustrando sonoramente a leitura que decorre.
É de enfatizar o acompanhamento musical da peça, que transporta emocionalmente a audiência, como se puxasse uns fios e o espectador sentisse este manuseamento; temos de reagir, não temos outra opção.
Um piano e um violino são o complemento necessário e imprescindível, não apenas à experiência da protagonista, como à experiência do público que assiste à peça. A música, ainda que intangível, torna qualquer obra ou peça literária mais palpável aos sentimentos, porque, de um modo muito particular, as realiza e significa. A escolha de uma melodia ou harmonia menor poderá significar a descrição de um cenário melancólico ou agonizante e vice-versa. É desta forma, portanto, que a música surge em Coragem de Mãe. Os momentos trágicos (entre outros de cariz diverso) são exteriorizados nas palavras de Tabori e o espectador sente-os tão ou mais presentes e vivos dentro de si próprio graças, não apenas ao poder inerente da palavra, como ao igual poder da música. Ambos funcionam, pois, como um meio de “abrir via ao coração” (citando Petrarca). Numa relação direta e exclusiva, a linguagem instrumental performada e a linguagem literária de Tabori transposta na leitura encenada criam, assim, uma forma de arte mais elevada, mais imersiva e, por sua vez, mais significativa.
Levados a questionar a condição humana, fazemos as mesmas perguntas que a mãe de Tabori, sentimos dor pela sua dor. A mãe olha para si como traidora, afinal, “aquele que sobrevive aos mortos é como um traidor”. Indignados, murmuramos um “não”.
Será como Brecht afirma no seu poema Louvor do Esquecimento, que a fraqueza da memória oferece uma fortaleza aos homens, como um lugar onde se esconde do mundo? Ou será como Tabori o faz, através do não-esquecimento, do perpétuo relembrar do que não se deverá repetir?
Ao aproximarmo-nos do final da leitura, o público sente um alívio; no entanto, não escapa às dúvidas existenciais da mãe; não há como escapar.
Editado por Maria Beatriz Vieira
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