Em apenas cerca de 300 anos de história, a interrupção voluntária da gravidez, aos olhos da lei estadunidense, manteve-se dentro do espetro que engloba desde a ilegalidade total até à liberdade do ato (sendo esta maioritariamente parcial).

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De acordo com o artigo A Brief History of Abortion law in America de Irin Camron, o aborto é uma prática recorrente desde o início da história da Humanidade, tão natural como a própria gravidez. No caso específico dos Estados Unidos, o aborto através de práticas e receitas caseiras da responsabilidade de parteiras (sendo este apenas aceitável até a mãe começar a sentir o feto a mexer-se no ventre) não deixou de ser legal até ao fim do século XIX. Esta mudança poderá dever-se a avanços medicinais que visavam afastar-se de práticas tradicionais antigas. Em 1880, na totalidade dos estados, o aborto torna-se, então, uma prática ilegal, excetuando no caso de “razões terapêuticas”. Sendo a determinação das mesmas tão ambígua quanto o nome indica, conseguir a permissão da interrupção voluntária da gravidez dependia do estatuto socioeconómico de quem o desejava. Este é um fator que se veio a tornar constante no país, quando se trata de saúde reprodutiva.
A década de 1960 trouxe consigo, entre outras coisas, uma liberalização sexual e um diálogo mais aprofundado acerca da emancipação feminina. A desmistificação do aborto foi um sintoma deste movimento, assim como a sua liberalização e descriminalização em diversos países ocidentais (como a Noruega, o Canadá, a Austrália, entre outros). Apesar da indubitável influência que os Estados Unidos terão sofrido de outros países, um acesso mais facilitado ao aborto na Europa, por exemplo, não significou um alcance instantâneo do mesmo para os cidadãos estadunidenses. Porém, tornou-se uma prática comum o deslocamento a outros países para interromper a gravidez de forma legal e segura. Para quem se encontrava num estatuto económico mais baixo, esta não era uma opção tão viável, pelo que era comum recorrer a práticas clandestinas que não garantiam a confiança e a segurança desejada. Camron relembra, no artigo acima mencionado, ocasiões em que houve quem arranjasse soluções para contornar o sistema e executar abortos de forma discreta, mas, ao mesmo tempo, de forma recorrente. O exemplo dado é o de uma linha telefónica popular para o qual se ligava e se perguntava por “Jane” como forma de solicitar um aborto.
É este o contexto em que se deu o caso Roe v. Wade. Em 1970, Jane Roe (nome inventado para proteger a identidade de Norma McCorvey) abriu um processo legal contra o procurador distrital do seu condado, Dallas (Texas), Henry Wade. Este processo afirmava que as leis de proibição do aborto eram inconstitucionais, apelando à 14.ª emenda da Constituição dos Estados Unidos:
« Nenhum Estado deverá elaborar ou executar leis que restrinjam os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa da sua vida, liberdade, ou propriedade sem o devido processo legal; ou negar a qualquer pessoa sob a sua jurisdição a igual proteção das leis.»
De acordo com Roe, o estado de Texas, e os restantes estados por consequência, não detêm o direito de negar a interrupção de uma gravidez seja qual for a razão. Ao utilizar a constituição como fonte, Roe afirma o aborto como sendo um direito humano e privar uma pessoa desse direito seria privá-la de liberdade. Este argumento foi uma das principais razões de discórdia no caso, sendo, nos dias de hoje, uma questão ainda muito debatida.
Perante esta situação, o Supremo Tribunal procurou um meio termo que permitisse o aborto; porém, de forma parcial, restringindo a interrupção voluntária de uma gravidez a partir dos primeiros três meses de gestação. A decisão foi tomada a 22 de janeiro de 1973, com 7 votos a favor e 2 contra, e estabeleceu o acesso ao aborto como um direito federal, ou seja, tornou-o num direito comum a todos os estados pertencentes aos Estados Unidos da América.
Esta decisão causou controvérsia pelo país inteiro. O crescimento da popularidade de igrejas evangélicas nos Estados Unidos, nas décadas de 1970 e 1980, poderá ter sido um movimento de reação perante o afastamento de ideais conservadores (como a autorização do aborto) da década anterior. Como tal, tomar partido contra aborto tornou-se, habitualmente, um ato conservador e cristão. Os movimentos antiaborto contemporâneos nos Estados Unidos da América são, ainda na sua maioria, criados por organizações religiosas.
Contudo, a legalização do aborto não significou a fácil acessibilidade ao mesmo. Como forma de o regularizar, diversas restrições foram impostas. De acordo com os dados do Instituto Guttmacher, uma organização focada nas leis respeitantes à saúde gestacional e reprodutora, nos primeiros cinco anos após Roe v. Wade, foram adotadas, em média, 38 restrições por ano. Nos 28 anos seguintes, o total de restrições não ultrapassou as 406. A partir de 2010, o número de restrições aumentou exponencialmente - possivelmente, como consequência da administração do presidente Barack Obama e da sua oposição - tendo sido criadas uma média de 57 restrições por ano, nos 5 anos seguintes.
Existiram muitos outros casos semelhantes ao Roe v. Wade. Um exemplo significativo é o Planned Parenthood of Southeastern v. Casey, em 1992, que, com o propósito de controlar o número de restrições ao aborto, considerou inconstitucional limitar o aborto a quem quer que fosse. Gonzales v. Carhart (2007), Whole Woman’s Health v. Hellerstedt (2016) e June Medical Services L.L.C. v. Russo (2020) são apenas alguns casos dos inúmeros que constam nesta complexa história jurídica. Todos estes casos, apesar de individuais, representam o movimento pendular ao qual a liberalização do aborto nos Estados Unidos tem estado sujeita desde a promulgação de Roe v. Wade.
Com a crescente contestação por parte de estados com intenção de impor mais restrições ao aborto (nomeadamente estados de grande dimensão e influência, como é o caso do Texas), Roe v. Wade foi posto à prova.
No dia 24 de junho de 2022, o Supremo Tribunal dos EUA anulou esta decisão, revogando o direito constitucional ao aborto, o que permite dar poder a cada estado para legislar de acordo com os seus ideais políticos e religiosos sobre o tema.
A questão mais importante é: posto a revogação, o que é que isto significará para o futuro dos Estados Unidos da América e dos seus cidadãos?
Previamente ao veredicto, o Centre of Reproductive Rights, a única organização que luta globalmente pela proteção dos direitos reprodutivos como fundamentais aos direitos humanos, estimaram que 25 dos 50 estados constituintes dos EUA baniriam o aborto, se tal lhes fosse permitido, nomeadamente: Alabama, Arizona, Arcansas, Georgia, Idaho, Indiana, Kentucky, Louisiana, Michigan, Mississípi, Missouri, Nebrasca, Carolina do Norte, Dacota do Norte, Ohio, Oklahoma, Pensilvânia, Carolina do Sul, Dacota do Sul, Tennessee, Texas, Utah, Virgínia Ocidental, Wisconsin e Wyoming.
No mês de outubro, cerca de 3 meses e meio depois da decisão, o aborto encontra-se inteiramente banido em 13 dos estados acima mencionados. Em estados como Alabama, Arcansas, Missouri, Kentucky, Dacota do Sul, Tennessee, Oklahoma, Idaho, Virgínia Ocidental e Texas, não há quaisquer exceções para casos de violação ou de incesto. No Mississípi, não há exceções para o caso anterior, mas é possível interromper uma gravidez resultante de um caso de violação. Em Wisconsin, por exemplo, para além das restrições acima, qualquer médico profissional que tome parte numa operação abortiva está sujeito a pena de um a mais anos de prisão, dado ser considerado um crime de séria gravidade (felony). Ainda assim, têm sido feitos esforços por parte de funcionários prestadores de serviços abortivos e de outras organizações defensoras deste direito para bloquear as restrições estatais através de processos jurídicos.
Outros estados desta lista encontram-se, de momento, bloqueados no avanço das suas leis antiaborto por decisão de um ou mais dos juízes do tribunal estatal. Os restantes mantêm o aborto legal, porém a sua proibição está no horizonte, dado que este direito não está protegido nas leis dos mesmos.
Perante este cenário, espera-se que as pessoas gestantes obtenham serviços abortivos por outros caminhos, através de viagens a estados vizinhos onde o aborto é legal, ou através de métodos pouco seguros, como clínicas de aborto clandestinas com condições de saúde incertas. Similarmente a este cenário, o New York Times, no artigo What Does the End of Roe Mean? Key Questions and Answers, fornece o exemplo do estado do Texas.
Este estado, conhecido pela sua agenda política conservadora, promulgou, em setembro de 2021, a proibição do aborto após as seis semanas de gestação, altura em que o batimento cardíaco do feto já é possível ser detetado. Consequentemente, assistiu-se a uma descida no número de abortos em clínicas dentro do estado, sendo que estes foram procurados nos estados vizinhos por intermédio de encomendas de pílulas abortivas.
Relativamente ao futuro dos cidadãos americanos com a revogação de Roe v. Wade, Elizabeth Mosley, investigadora no Centro de Saúde Reprodutora da Universidade de Emory, na Rollins School of Public Health e alumni da School of Public Health da Universidade de Michigan, afirma que as consequências são “infinitas”:
«Sabemos que, atualmente, nos EUA, se a alguém for proibido um aborto, as chances de autorrealizarem esse aborto em casa são maiores. Também sabemos que estes tipos de abortos podem não ser seguros, especialmente em ambientes restritos. Sabemos que recusar a realização de abortos significa que os pacientes e os seus filhos estão propensos a uma maior probabilidade de viver na pobreza, logo, banir o aborto aumentará a percentagem de famílias a viver em condições precárias. Sabemos que afastar as pessoas de serviços abortivos significa que estarão mais propensas a ficarem presas em situações de violência doméstica, por isso, revogar Roe v. Wade e banir o direito ao aborto irá aumentar a incidência de violência doméstica, a severidade da mesma e a percentagem de crianças vítimas de abuso infantil. Igualmente, sabemos que o afastamento do aborto aumenta os sintomas de doenças do foro mental, como a ansiedade, a depressão e, até, o abuso de substâncias. Provavelmente, o mais angustiante de tudo isto é saber que, quando banimos o aborto, a mortalidade materna – ou mortes relativas à gravidez – aumenta.»
No que concerne ao futuro dos Estados Unidos da América, esta decisão é vista como um ato de “excecionalismo” (Pipa Norris em “Exceptionalism, again? American Attitudes towards Abortion”), de forma a se destacarem das restantes nações Contrariamente à tendência global de legalizar o aborto com intenção de fornecê-lo de forma segura e com um acesso expandido, os EUA regrediram e juntaram-se a um grupo pequeno de países que, desde 1994, apertaram as leis relativamente ao aborto, incluindo a Polónia, El Salvador e Nicarágua.
Sendo que Roe v. Wade data a 1973 — um ato progressista e moderno para a época, face a outros países ocidentais — e a sua revogação se tornou possível em 2022, resta-nos questionar em que outras áreas englobadas nos direitos humanos ou constitucionais poderão os Estados Unidos da América voltar atrás.
Sofia Lopes & Clara Ferreira
Referências Bibliográficas:
Carmon, Irin. “A Brief History of Abortion Law in America.” Billmoyers, 14 de Novembro de 2017, https://billmoyers.com/story/history-of-abortion-law-america/.
Delaney, Nora. “Roe v. Wade Has Been Overturned. What Does That Mean for America?” Harvard Kennedy School, 28 de Junho de 2022, https://www.hks.harvard.edu/faculty-research/policy-topics/fairness-justice/roe-v-wade-has-been-overturned-what-does-mean.
Guttmacher Institute. “US States Have Enacted 1,381 Abortion Restrictions since Roe v. Wade Was Decided in 1973.” Guttmacher Institute, 21 de Junho de 2022, https://www.guttmacher.org/infographic/2022/us-states-have-enacted-1381-abortion-restrictions-roe-v-wade-was-decided-1973.
Killough, Ashley, and Ed Lavandera. “Conservative Agenda Dominates Texas, despite Democratic Hopes of Turning the State Blue.” CNN, 28 de Maio de 2021, https://edition.cnn.com/2021/05/28/politics/texas-legislature-politics/index.html.
Kitchener, Caroline, et al. “Abortion Is Now Banned in These States. See Where Laws Have Changed.” The Washington Post, 24 de Junho de 2022, https://www.washingtonpost.com/politics/2022/06/24/abortion-state-laws-criminalization-roe/.
Michigan School of Public Health. “Consequences of Roe v. Wade Being Overturned Are Infinite, Says Michigan Public Health Alumna.” Michigan Public Health News Center, 28 de Junho de 2022, https://sph.umich.edu/news/2022posts/consequences-of-roe-v-wade-being-overturned-are-infinite-says-alumna.html.
Miller Cain, Claire, and Margot Sanger-Katz. “What Does the End of Roe Mean? Key Questions and Answers.” The New York Times, 3 de Maio de 2022, https://www.nytimes.com/2022/06/20/upshot/abortion-united-states-roe-wade.html.
RTP. “Supremo Revoga Roe v. Wade. Missouri Foi o Primeiro a Avançar Com a Proibição Do Aborto.” RTP Notícias, 24 de Junho de 2022, https://www.rtp.pt/noticias/mundo/supremo-revoga-roe-v-wade-missouri-foi-o-primeiro-a-avancar-com-a-proibicao-do-aborto_v1415232.
The New York Times. Tracking the States Where Abortion Is Now Banned. https://www.nytimes.com/interactive/2022/us/abortion-laws-roe-v-wade.html.
Center of Reproductive Rights, https://reproductiverights.org/.
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