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"A Reconquista de Olivenza"

Foto do escritor: Jornal O ColaJornal O Cola

Texto da autoria de Mafalda Vale e Gonçalo Counhago

Imagens da autoria de Filipe Ferreira


Até ao dia 16 de outubro, estará em reposição no Teatro São Luiz a peça A Reconquista de Olivenza, concebida por Ricardo Neves-Neves e Filipe Raposo. A peça estreou em fevereiro de 2020, tendo a sua exibição sido interrompida devido ao surgimento da pandemia mundial COVID-19.


No passado dia 29 de setembro, a equipa do jornal O Cola teve o privilégio e o prazer de assistir ao ensaio da peça, tendo confirmado em primeira mão o quão dinâmico e cativante é este espetáculo, que humoristicamente mistura referências históricas e contemporâneas dentro das mais diversas áreas, como a política, a religião, a música, a televisão e até os videojogos. Sendo que se trata de uma peça influenciada pelo teatro de revista, A Reconquista de Olivenza mantém-se atual através de alusões a eventos e fenómenos sociais atuais, como a falência da TAP ou o mais recente jingle do Pingo Doce. A história de Portugal é abordada com um twist de atualidade, roçando a ridicularização e o absurdo, com trotinetas e um carrinho de golfe no lugar dos cavalos e do coche real.


A ação dá-se num universo em que coexistem traços de épocas históricas muito diferentes, o que contribui para o caráter quase onírico da peça. Este dinamismo é também concretizado através dos excecionais números musicais que intercalam a comédia e mantêm o espectador envolvido. A orquestra, dirigida pelo maestro Cesário Costa, e o elenco, sob a direção vocal de João Henriques, culminam numa performance musical brilhante. Para além disso, encontramos um guarda roupa inventivo, extravagante e expressivo, da autoria de Rafaela Mapril, que traz emoção ao enredo e não impede a liberdade de movimento das personagens, elevando a carismática interpretação por parte dos atores. Para além do cenário habitual de teatro, as cenas são complementadas por uma tela onde são projetados alguns efeitos especiais. Sendo translúcida, a tela permite transições de cenário dinâmicas (por vezes feitas pelo próprio elenco, que, de forma orgânica, não quebra a atuação), fundindo-se, assim, com o palco e as personagens, elementos distintos que complementam a expressão artística e mantêm o ritmo da peça.


A Reconquista de Olivenza é, ainda, extremamente marcada por referências de cunho político, assumidamente provocatórias, numa bela manifestação de liberdade artística por parte do autor. Ironicamente, com o mote de “fazer cumprir Portugal” e conquistar o Quinto Império – a que Pessoa tanto apelou na sua Mensagem –, é retratada a família real portuguesa, liderada pela Rainha de Portugal e dos Algarves, a formar uma aliança com os marxistas da Margem Sul e com o califado de Alcácer do Sal. Há uma ridicularização de todas as figuras de poder representadas, políticas ou religiosas, sendo que o seu discurso oscila entre a “elevação” que estamos habituados a associar à realeza e à igreja e certas falhas linguísticas comuns, até rudes, que mais facilmente associaríamos às classes sociais mais baixas. A sátira é levada ao ponto de aparecerem três Nossas Senhoras – de Fátima, de Guadalupe e de Lourdes –, que recorrem ao tarô e à astrologia para prever o futuro e que acreditam no karma e na manifestação.


A música acrescenta, também, toda uma outra dimensão de referências à peça. O ponto de partida musical é a época barroca – desde o surgimento da ópera até à morte de Bach. No entanto, o produto final é de uma versatilidade surpreendente, entendido como uma espécie de cacofonia, com uma mistura de referências que incluem Amália Rodrigues e até um original da banda sonora de Cinderela, da Disney.


Paralelamente a estas, encontramos inúmeras referências à cultura pop, sendo várias cruciais ou pelo menos marcantes na contemporaneidade da cultura portuguesa. Exemplos disso são as referências a falas da dobragem portuguesa da Navegante da Lua (o icónico "pelo poder do prisma lunar...vou castigar-te!"), ou da dobragem do Dragon Ball feita pela SIC nos anos 90. Na verdade, um dos personagens mais centrais à trama da peça – Buu Buu, o chefe do exército real português – nasce da adaptação portuguesa de um personagem de Dragon Ball, Majin Boo. O objetivo principal da peça também se encontra intrinsecamente ligado à popular série japonesa, mas, desta vez, o desejo a ser realizado pelo "Dragão do Quinto Império" não seria imortalidade ou juventude eterna, mas que Portugal fosse reconhecido como o Império capaz de suplantar todos os anteriores, trazendo um período de paz nunca antes visto.


Esta noção de um "Quinto Império" permaneceu tópico comum à literatura e cultura ao longo dos milénios, desde o sonho de Nabucodonosor II, rei da Babilónia. Nesse sonho, Nabucodonosor vê a imagem de uma estátua de um homem, dividida em 5 secções de metais diferentes – cabeça de ouro, torso de prata e bronze, pernas de ferro e pés de barro –, sendo que cada tipo de metal representa um grande Império da Humanidade. Contudo, também sonha que uma pedra, enviada pelo Deus judaico-cristão, derrubaria a estátua. Essa pedra seria metonímia do "Quinto Império'' e apagaria, simbolicamente, a importância de todos os anteriores. E é com este auxílio divino que começa o desenrolar da peça.


Após o sonho de Nabucodonosor, somos remetidos para Afonso Henriques nas vésperas da batalha de Ourique, onde, segundo a tradição, Jesus teria surgido num sonho e eleito Afonso como arauto de um "grande Império". Na peça, é durante este momento que é revelado ao primeiro rei de Portugal a existência das sete bolas de cristal que, reunidas, trarão o Quinto Império – e com ele, uma paz que durará 1000 anos. Este sonho foi passado de monarca em monarca até chegarmos à Rainha de Portugal retratada na peça.


Ainda dentro da veia das referências histórico-culturais, surge na peça um galeão português que se perde no mediterrâneo e passa por diversos locais e criaturas familiares à tradição literária grega antiga, simulando o exato percurso de Ulisses quando se perde no regresso a casa.


Deste modo, concluímos que A Reconquista de Olivenza não se reduz ao seu próprio título. Pegando num ponto de partida relativamente simples – a reconquista de um território que durante anos confundiu as fronteiras geográficas entre Portugal e Espanha – expande-se para uma sátira de âmbito sociopolítico, conferindo-lhe ainda uma forte componente cultural. Consegue um fiel retrato da cultura portuguesa na sua forma mais pura e despretensiosa, apesar da sua representação por personagens que, numa primeira instância, nos parecem ser o oposto disso. Tendo em consideração todos estes aspetos, face à singularidade da peça, recomendamos este espetáculo a todes ês nosses leitores!

 
 
 

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