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A presença da ausência

  • Foto do escritor: Jornal O Cola
    Jornal O Cola
  • 11 de mar. de 2023
  • 2 min de leitura

Todos os dias chegava a casa pelas oito da noite. Trazia comigo uns pés feridos e era sempre recebida com abraço largo e uma sopa quente, que aqueciam a minha alma e apaziguavam qualquer dor ou frustração. Todos os dias me sabiam a sábado, desde que tu estivesses em casa, ao fogão, a ouvir a rádio enquanto dançavas com os aromas e os utensílios de cozinha que te ofereci no Natal. Conversávamos muito à hora de jantar, sobre os mais variados temas, mas volta e meia acabávamos no mesmo: o teu medo de cair no esquecimento. Sempre me demonstraste esse receio, fosse marcando pequenos cantinhos do nosso lar com desenhos de coelhos a caneta permanente, referentes à amorosa alcunha que te coloquei, fosse com a intensidade com que vivias a vida, marcando tudo e todos que contigo se cruzassem. Eu não fui exceção.


Durmo agora numa cama menos cheia, janto numa mesa menos preenchida, pois apenas me resta a tua memória. Foste-te. Partilhei casa contigo, partilhei também uma história; no entanto, aqui não estás para partilhar esta dor. Sofro-a sozinha, enquanto janto uma refeição de micro-ondas, insípida, sem amor e sem vontade, nesta cozinha que ecoa. Até hoje nunca tinha reparado em tamanho eco. Penso que a tua presença o abafava. Talvez tenhas também marcado esta casa e agora, com a tua ausência, ela se manifeste desta forma, ecoando, chamando por ti.


Tentei fazer uma sopa. A tua sopa. Resultou numa aguinha verde com cenoura crua a boiar, uma tremenda catástrofe culinária. Se aqui estivesses, rir-te-ias e decerto dirias “Dedica-te às couves!”, expressão que proferias sempre que fazia algo imperfeito. Expressão essa que repetidamente me aborrecia, mas pela qual hoje suspiro de saudade. Sempre te disse que o teu medo era tonto e aqui tens a prova. A tua presença marcou-me e, agora que já aqui não estás para o fazer, assinalo-a eu por onde passo. Desenho a tua alcunha. Fi-lo no guardanapo do café do Ramires, no cantinho do livro de presenças, no banco do jardim Amália Rodrigues (onde tanto namorámos).


És permanente, meu amor. A tua memória é como um cabelo branco, não largas a minha cabeça, mas eu também não te pretendo arrancar. Simbolizas uma parte da minha vida e desejo levar-te para qualquer lado, envergando orgulhosamente o meu bonito cabelo branco.


E agora, que é feito de mim, sem o sabor do teu abraço, sem o calor da tua sopa, com os pés e a alma feridos?


Mariana Correia

Editado por Mafalda Vale


 
 
 

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