Sinopse: Tatuagem é um texto sobre uma jovem mulher presa num seio familiar claustrofóbico. Anita, abusada pelo pai, homem violento e perturbado, sobrevive perante a indiferença de uma mãe anestesiada e a distorção da realidade vivida pela irmã mais nova. Não suportando mais a sua condição, e adivinhando a sua irmã como próxima vítima, a jovem anuncia a sua libertação, movendo-se com uma coragem invulgar, ajudada pelo seu novo amor, um jovem florista de trato simpático. Mas nem mesmo assim as rosas perdem os espinhos e este cerco antigo, feito de opressão patriarcal, mantém-se fechado em torno de Anita e da sua descendência - um bebé de pai incerto que não chora e não ri. Esta é uma história como talvez muitas outras, em que os sistemas de opressão se repetem num ciclo vicioso. O texto é rarefeito, dividido em capítulos curtos, como flashes que iluminam por breves momentos o horror, para logo a seguir desaparecerem, deixando-nos só com os ecos daquela realidade que, em espiral, se precipita num fim inesperado.
Estive na estreia da sétima edição do Festim «Esta Noite Grita-se», na biblioteca Palácio das Galveias, no Campo Pequeno. Enquanto a banda de indie rock The National se preparava para subir ao palco a poucos metros dali, estava eu petrificado com a leitura da peça Tatuagem, como demonstrado através da sinopse, podendo admitindo não ser texto fácil de ser digerido.
Conforme a leitura avançava, o calor e o sentimento claustrofóbico aumentavam em mim, crendo que nos outros espectadores a sensação era mútua. Um texto repleto de ironia. É importante ressaltar que Dea Loher cresceu numa Alemanha do pós-guerra e escreveu esta peça em 1992, após a queda do Muro de Berlim, fazendo parte do movimento pós-dramático que se apoia no realismo num apelo ao emocional dos espectadores.
É uma obra densa e com um final inesperado! Sem spoilers, uma das personagens que mais me chamou à atenção foi mãe - a Juli dos cães. Traumatizada e praticamente catatónica, refletindo os traumas que o marido, Wolf do forno, lhe deixou. Assim como várias tatuagens, que não passam de cicatrizes, a pele dela fora marcada para sempre!
É interessante analisar também a relação das duas irmãs, Anita e Lulu, pois enquanto a mais velha tem de lidar com o peso do abuso e com a necessidade de resistir para indiretamente salvar a caçula. Esta por sua vez acaba sendo mais agressiva, canalizando a própria raiva contra a mãe e a irmã. Vale mencionar que na relação da mãe com as filhas, enquanto a mais velha tenta resgatar a mãe de seu refúgio catatônico, a caçula deposita todas as suas frustrações em reflexo de uma família traumatizada.
A peça toma outro rumo com a chegada do florista, mas, enquanto o seu impacto inicial é de dar um fôlego a mais, a sua continuidade acaba sendo questionada. Isso mostra como, em reflexo da sociedade, os homens têm uma dificuldade colossal - e por vezes desnecessária - em entender os traumas sofridos pelas suas companheiras, muitas vezes acabando por os minimizar.
Ao terminar a leitura, a minha reação instantânea foi a de um respirar profundo. É uma obra a não ser esquecida: como uma tatuagem na memória, ficará por vezes esquecida, mas nunca apagada.
A próxima apresentação do festim será Menina Júlia de August Strindberg e acontecerá no dia 17 de novembro, às 21h, no dia 18, às 19h, e 19, às 16h, no Museu da Marioneta.
Editado por Maria Beatriz Vieira
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