Editado por: Ricardo Cerdeira
Num autêntico back to basics, embora através de uma ótica madura e fresca, os Vampire Weekend regressam ao ativo com uma obra-prima que nos relembra de o que é nostalgia na música, feita como deve ser.
Por uma questão de contexto, vale a pena recuperarmos, de forma breve, o percurso do grupo nova-iorquino até ao seu quinto e mais recente álbum. Foi há já 16 anos, em 2008, que os Vampire Weekend lançaram o seu primeiro disco – de título homónimo – e que causaram um estrondo na cena do indie rock. Trazendo de Nova Iorque não só o espírito singer-songwriter, apropriavam-se também de influências um pouco de todo o lado. Desde o ska jamaicano, aos bongos e até aos riffs de guitarra africanos, a banda ganhou pelo público um lugar prestigiado na cena do rock alternativo. Não demoraram a surgir comparações a Paul Simon ou Talking Heads. Para além da receção crítica positiva em relação ao disco, a música “A-Punk” chamou à atenção também ao público mainstream, dando assim origem ao seu grande êxito comercial, desde então jamais ultrapassado. Com o balanço excecional com que havia sido recebido o álbum de estreia, a banda sentiu-se confortável em lançar mais um disco, em 2010. A par da paleta de sons e influência do anterior, “Contra” solidificou o som dos Vampire Weekend e, simultaneamente, serviu para silenciar acusações de que se tratavam de meros one-hit wonders.
Foi, no entanto, só em 2013 que o grupo realmente se afirmou como o centro do zeitgeist do indie rock. Em “Modern Vampires of the City”, demonstram todas as suas qualidades, química e talentos no seu apogeu — e a todos os níveis. O terceiro lançamento, pináculo da sua carreira (pelo menos, até “Only God Was Above Us”), trata-se, acima de tudo, de um statement, no qual finalmente afirmam o merecido estatuto de grupo sensação geracional do mundo do rock alternativo no século XXI. Uma referência na música da década passada, é um marco brilhante do início ao fim. Desde os já clássicos modernos como “Unbelievers”, “Diane Young”, “Ya Hey” e “Worship You”, até a momentos simultaneamente memoráveis, embora vindos de uma vertente mais tristonha e cantautora de Ezra Koenig (líder e vocalista do grupo), como “Step”, “Obvious Bicycle” ou “Hannah Hunt”. Aqui tornou-se claro o poder e, por consequência, a pressão que estava nas mãos destes quatro rapazes. Talvez seja devido precisamente a tal sucesso e expectativas neles depositadas pelos seus seguidores, que justifica o seu hiato de 6 anos. Após “Modern Vampires of the City”, Ezra e companhia já tinham atingido o sonho de qualquer banda, em apenas cinco anos: de jovial e enérgica surpresa do final da primeira década do século a aclamados e estabelecidos músicos representantes de uma geração no início da década seguinte. Por efeito, é natural que tenha sido necessária a decisão de se ausentarem. Deu-se também a partida do teclista e compositor Rostam Batmanglij, perseguindo uma busca pessoal e artística num mundo isento do sucesso da banda.
Precisamente um ano antes da pandemia que tomou o mundo de assalto, os Vampire Weekend regressam com o seu quarto disco. Um estranho momento de transição e de procura de significado musical e existencial por entre a confusão da fama imprevista. Um duplo álbum que explora todos os estilos musicais anteriormente abordados — e mais ainda — a um nível sem precedentes, “Father of the Bride” permitiu à banda isso mesmo: uma busca musical sem limites com abertura a novos horizontes líricos e, sobretudo, sonoros. Resultou, porém, de modo contraproducente, numa certa azáfama criativa onde é infelizmente privilegiada a experimentação para seu prejuízo, dando lugar a uma inconsistência total repleta de faixas pouco memoráveis e raros momentos de génio, ao invés de um projeto coeso e consolidado, consciente dos seus limites (o que a banda havia anteriormente conseguido 3 vezes). “Father of the Bride” é, contudo, um golpe artístico bastante louvável. E de onde, felizmente, descendem acontecimentos de tremendo valor. Entre eles, destaca-se uma das melhores canções de todo o catálogo discográfico, “Harmony Hall”; e, ainda, “This Life”, “Unbearably White”, “Sympathy” (ironicamente e provavelmente propositadamente semelhante a “Sympathy For the Devil”, dos Rolling Stones), ambos os momentos de colaboração com Steve Lacy e as contribuições de Danielle Haim (membra e líder do grupo Haim, com as restantes irmãs). Em todo o caso, existe no discurso à volta de “Father of the Bride” uma certa sensação de que aquele foi um período estrangeiro relativamente àquilo a que foram os anos anteriores: distinguidos pela consistência em qualidade que transportavam consigo os três álbuns iniciais.
Porventura, esta circunstância turbulenta terá sido para melhor, de forma a reunir o foco e coerência característicos do grupo, visto que a 5 de abril de 2024 nos é oferecida uma autêntica dádiva artística sob o título “Only God Was Above Us”.
Foram cinco os anos passados em antecipação pela nova adição a uma discografia já robusta e de quase duas décadas. A 16 de fevereiro, os Vampire Weekend quebram o silêncio ao lançarem um single duplo: “Capricorn” e “Gen-X Cops”. No primeiro, é-nos proporcionada uma autêntica viagem no tempo em direção à época de “Modern Vampires of the City”. A simples progressão de acordes, o piano em arpeggio, a catarse emocional acompanhada por um feedback e distorção estonteante, e, até, um videoclipe de acompanhamento que tão bem retrata a cidade de Nova Iorque da pré-gentrificação dos anos 70. Tudo isto enquanto simultaneamente soavam como novos e como uma lufada de ar fresco. Os Vampire Weekend no seu melhor. A segunda faixa, “Gen-X Cops”, não deixa também de ser, à sua maneira, um regresso a meados da década de 2010. No entanto, não tão óbvio. Desta vez, a canção abre com um abrupto riff de guitarra pouco ortodoxo que promete alguma estranheza à primeira audição: leva-nos a questionar seriamente se aquilo realmente funciona. Contudo, após repetidas audições a resposta é clara: sim. Enigmaticamente, aquilo que primeiro soava a um alarme despertador acaba por se conjugar perfeitamente com os restantes instrumentos.
Com isto, não restava dúvida de que estaríamos, a meses de distância, perante um retorno digno. Teoria esta que não tardaria a ser alimentada, passado menos de um mês, a 14 de fevereiro com a música “Classical”, e, mais tarde, a 28 de março com “Mary Boone”. Em “Classical”, a musicalidade e química instrumental entre cada membro da banda apresenta-se no seu melhor. A faixa é uma colossal explosão de criatividade que resulta em mais um passo artístico caracterizado por uma total cacofonia, todavia organizada e estimulante em todos os sentidos imagináveis. Uma composição altamente heterodoxa mas, de forma bizarra, agradável ao ouvido, que evidencia uma vez mais a genialidade que para ali vai entre os três membros. Todavia, sublinho, com ainda mais urgência e prioridade, a canção a nível lírico: onde a excelência de Koenig não foge à regra. Desta vez, uma ilustração da eterna reflexão e ponderação do revolucionário idealista e das suas preocupações acerca do cenário pós-revolução: será esse melhor do que o atual? O que muda no futuro? E o que sobra do passado? E, acima de tudo, a difícil aceitação mas inevitável conclusão daquilo que se parece desenrolar ciclicamente ao longo da História civilizacional: o que antes julgávamos como sendo a pior demonstração dos males e das mais cruéis figuras e símbolos de antigamente não são agora as ideias e pensamentos mais estimados? De uma maneira ou outra, o poder não parece nunca sair do seu lugar? A entidade que o exerce não acaba sempre por ser a mesma/anterior? Ou será somente o arcaico e (infelizmente) reconhecido oráculo da irresistibilidade do ser humano face ao poder e à corrupção — os constantes e inevitáveis obstáculos à paz eterna e emancipação do Homem — a comprovar-se uma vez mais?
“Untrue, unkind and unnatural
How the cruel, with time, becomes classical
I know that walls fall, shacks shake
Bridges burn and bodies break
It's clear something's gonna change
And when it does, which classical remains?”
Num constante estado de ambiguidade, o realismo e cinismo encontram-se no seu esplendor e prontos a conquistar o que resta do espírito rebelde. Em “Mary Boone”, intitulada em homenagem a uma “art dealer” da cidade de Nova Iorque, um elegante coro ecoa nos ouvidos, até à quebra de suspense por parte de uma bateria que mais soa a uma sample de hip-hop ou trip-hop, mas que, estranhamente, se encaixa de forma brilhante no angelical ambiente que lhe precedia. O mesmo acontece por volta de mais uma ou duas vezes até aos cinco minutos finais da canção chegarem a um brilhante e grandioso final.
Uma semana depois, “Only God Was Above Us” é colocado nas plataformas de streaming e nas lojas de CD e de vinil. Estaria a antecipação à vista de uma gigante desilusão, ou de uma satisfação inigualável? Tendo ouvido já o disco de frente para trás, de trás para a frente, mais de 10 vezes, sinto-me seguro ao afirmar que o cenário perante o qual me encontrei foi o último. Não são comuns os fenómenos como o que se deu a 5 de abril. Aquilo que é o acumular do suspense, do presságio, de expectativas inalcançáveis sentido por um certo coletivo demográfico em relação a determinada ocorrência raramente é correspondido a um contentamento consensual e universal, assim que dada ocorrência — passo a pleonasmo — ocorre. Contudo, suspeito que tenha sido precisamente isso o que se deu desta vez.
Eles estão de volta. E noto que esta expressão não é usada apenas em sentido literal. O som dos Vampire Weekend está de volta. O som do passado está de volta. As memórias do pré-COVID estão de volta. A minha despreocupação e juventude eufórica que tanto caracteriza a minha infância está de volta. Apenas a um dispositivo eletrónico de distância, encontram-se à minha disposição 47 minutos capazes de me fazer reacender a minha felicidade infantil, e assim, recordar também parte da minha essência.
Mas o projeto, que é o mais ambicioso (atrás, talvez, de “Father of the Bride”) de todos, não fica pela nostalgia e pela satisfação supérflua e imediata do fã que aceitaria qualquer coisa que lhe chegasse aos ouvidos. E, por esse facto, “Only God Was Above Us” é, por mim, elevado a um patamar apenas rivalizado por “Modern Vampires of the City”. Koenig e companhia retomam temas e sons anteriores, porém, com uma certa maturidade e sabedoria que nos é oferecida apenas com a vivência do tempo. São as letras encantadoras, os assuntos abordados, as profecias proferidas. Não fosse já de esperar, o quinto álbum da banda fala – e não é pouco – de Nova Iorque (como se testemunha pela capa). De uma cidade antes desprovida da gentrificação e atualmente vítima da globalização do século XXI que prioriza bancos financeiros a bares de música, e lojas de M&M’s a cinemas pornográficos. De uma Nova Iorque já distante no sistema do espaço-tempo em que os próprios membros da banda mal viveram. Não só devido ao tempo em que nasceram, mas também às suas conhecidas situações altamente confortáveis a nível financeiro e social em que sempre se encontraram (muito bem satirizadas em “Prep-School Gangsters”). Nem sempre são bem-sucedidas pela cultura popular as “cartas de amor a Nova Iorque”, frequentemente chatas e que, na sua maioria, não fazem justiça àquilo que tão apaixonadamente tentam honrar, tornando-se em trágicas e autênticas paródias de si mesmas. Mas Ezra Koenig consegue, aparentemente sem grande esforço, ser sempre a exceção nesse aspeto (tal como James Murphy e os LCD Soundsystem).
São também mencionados assuntos como as lacunas geracionais, a procura por significado pessoal e um sentimento de constante e cíclica guerra. Guerra esta que pode tomar a forma a nível bélico mas também temporal, social, cultural ou emocional. Logo na primeira música “Ice Cream Piano” (jogo de palavras com o refrão “I scream piano”), Koenig lamenta:
“You don't want to win this war 'cause you don't want the peace
Armistice, we never tried it
You're the soldier,
I'm police
Listen, baby, we can't deny it
You don't want to win this war 'cause you don't want the peace (…)
We're all the sons and daughters of vampires who drained the old world's necks”
Após a introdução enérgica e dramática que é a primeira faixa, seguem-se os singles “Classical” e “Capricorn”. De seguida, é a vez de “Connect”, na qual o vocalista procura paz emocional e um reconcílio pessoal com o mundo que lhe rodeia:
“Now is it strange I can’t connect? (…)
I know once it's lost it's never found
I need it now
The grid is buried in the ground
Hopelessly down”
Em “Prep-School Gangsters”, a banda alcança um novo hit que ficará certamente relembrado como um dos mais celebrados momentos do disco, que, para além de exibir uma brilhante musicalidade (uma vez mais inspirada no afro-centrismo de “Graceland” de Paul Simon), comenta a perturbadora e tragicamente irónica vida adotada pelos rapazes de uma classe social privilegiada (os que têm, portanto o privilégio de frequentar uma prep-school ou uma ivy-league). Glorificando o lifestyle dos drug dealers e grupos de rua que vivem em situações precárias, mimicam os seus passos, frequentam os lugares mais desagradáveis e praticam as atividades menos recomendáveis:
“I was tired but wakin' up
I was dying to test my luck
Prep-school gangsters barred the way
There was nothin' I could say”
Em “The Surfer”, a poesia pura ilustra mais uma vez a cidade e o seu quotidiano. Em “Gen-X Cops” é explicitamente abordada a questão geracional: “Each generation makes its own apology”. Depois de “Mary Boone”, em “Pravda” (russo para a palavra “verdade”) Koenig aparenta, ao som de guitarras semelhantes às de Prep-School Gangsters, mais próximo de uma solução a esta hipotética e multifacetada guerra que percorre como tema reinante o albúm do início ao fim:
“Your consciousness is not my problem
‘Cause when I come home, it won't be home to you”
Sobra-nos “Hope”, a décima e última canção. Durante mais de 7 minutos, é uma evidente conclusão do conflito em questão ao longo do disco. Mencionam-se no decorrer da canção várias instâncias em que o desenlace de disputas e confrontos, sejam de que natureza sejam, não fora o desejado. Nesse sentido, recupera a mensagem pessimista e cínica em “Classical”. Porém, agora o protagonista já não se encontra em negação e aceita o desfecho desta sua guerra atual, independemente dos seus efeitos consequentes, através da repetição de um melancólico apelo ao assentimento universal:
“I hope you let it go
Hope you let it go
The enemy's invincible
I hope you let it go”
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