top of page
  • Foto do escritorJornal O Cola

«Peço para usar da palavra»

«Em nome de todos os estudantes da Universidade de Coimbra, peço a vossa excelência para usar da palavra.»[1] Foram estas as palavras que levaram à prisão de Alberto Martins, presidente da Associação Académica de Coimbra (doravante, AAC) no final dos anos 60. Era dia 17 de abril de 1969, dia no qual se inaugurou o Edifício das Matemáticas, na Universidade de Coimbra. O pedido dos estudantes para ter a palavra durante a cerimónia teria já sido negado pelo reitor da Universidade, no dia anterior. Ainda assim, Alberto Martins dirigiu-se a Américo Thomaz, Presidente da República, e pediu-a novamente. Quando o seu pedido é ignorado, é pelos estudantes, e em nome deles, que o dirigente associativo se põe de pé, sobe a uma cadeira e faz o seu próprio discurso, sem embargo de não ter autorização para o fazer. Muito se pode dizer acerca da Crise Estudantil que assolou toda a década de 60, mas neste momento, e enquanto privilegiados estudantes do ensino superior, não podem restar dúvidas de que, naquele dia, Alberto Martins falou pelos estudantes – não apenas pelos conimbricenses, não apenas pelos seus contemporâneos, mas por todos aqueles que já o tinham sido e que ainda o viriam a ser. Afinal, e sabemo-lo bem, o Estudante nunca deixa de o ser.


No seu discurso, o presidente da AAC alertou para os problemas da Universidade, acusando-a de ser «retrógrada e elitista» e de «não responder aos problemas da sociedade»1. Além disso, mencionou ainda problemas de foro nacional, como a reduzida taxa de alfabetização e a pobreza do país.


Naquela noite de abril, há mais de cinquenta anos, Alberto Martins foi detido por sete agentes da PIDE e passou a noite sob interrogatório. A sua detenção levou um grupo de estudantes a elaborar um protesto, exigindo a sua libertação. Tal como seria esperado do Estado Novo, também esses estudantes foram detidos. Era o estalar da Crise Académica, ainda que o problema tivesse começado muito antes.


A tensão entre os estudantes universitários e o regime estava já presente desde o início da década, motivada pela proibição, em 1962, das comemorações do Dia do Estudante. A comunidade académica respondeu a esta proibição da maneira que melhor sabia, concentrando-se na Cidade Universitária e protestando contra o que tinha sido decretado pelo Ministro da Educação. Nesta altura, o regime conseguiu recuperar o controlo da situação, mas acendeu nos alunos a chama por justiça e mostrou-lhes o poder que podem ter quando se unem.


Foi, contudo, já no final da década, após a detenção de Alberto Martins, que o verniz realmente estalou e, desta vez, a revolta dos estudantes prolongar-se-ia durante o resto do ano. Apenas cinco dias após a detenção do presidente da Direção Geral da AAC, oito estudantes da Universidade de Coimbra foram suspensos e proibidos de assistir às aulas. Em resposta, foi decretado luto académico pela Assembleia Magna da AAC e iniciou-se «uma onda de anarquia que tornou impossível o funcionamento das aulas»[2].


Quando José Hermano Saraiva, Ministro da Educação à data, reconhece e admite a fragilidade provocada pela revolta estudantil, a Instituição é encerrada, mantendo apenas o calendário de exames. Dúvidas houvesse, estava provado o impacto do regime nas instituições de ensino superior. Em resposta, a AAC colocou na rua uma «Carta à Nação», que faz, atualmente, parte do espólio do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra[3]. Simultaneamente, equacionou-se a possibilidade de boicotar o calendário dos exames nacionais. Assim, os estudantes reprovariam deliberadamente e, consequentemente, ficariam mais próximos de ser chamados a lutar na Guerra Colonial. Apesar das consequências que podiam vir a enfrentar, e que podiam levar, em última instância, à morte, muito poucos arredaram pé: na votação, foram mais de 5 000 os que se mantiveram a favor do boicote, contra menos de 200, que optaram por realizar os exames.


Dá-se então a cisão na Academia, que se passa a dividir entre grevistas e fura-greves. Quando a greve começa, a 2 de junho, o primeiro dia do calendário de exames de 1969, há estudantes até que se fazem acompanhar dos pais, uns porque foram obrigados por estes a furar a greve, outros por receio das retaliações. Dos fura-greves, destaca-se ainda o grupo liderado por José Miguel Júdice, que o fazia não por medo, mas por convicção. Em entrevista ao Público, trinta anos mais tarde, Júdice viria a dizer que continuava a acreditar que a sua tinha sido a decisão certa[4].


Sem exames para os quais estudar, os grevistas dedicaram-se a agitar a cidade de Coimbra: a festa era constante e os estudantes decidiram ainda oferecer flores e largar balões. A cidade é pequena e o espaço ocupado pelos estudantes universitários era ainda mais reduzido, limitando-se a uma área de apenas poucos quilómetros quadrados ao redor da Universidade. Naturalmente, numa área reduzida, a informação corria de forma veloz e tornava-se cada vez mais difícil de controlar.


Numa tentativa de parar os estudantes, a GNR organizou um cerco à Universidade de Coimbra, vigiando todos os caminhos que a ela levavam e permitindo apenas a passagem de professores, funcionários e alunos que fossem realizar os exames. Os grevistas, contudo, não se deixavam surpreender, e, na noite anterior ao cerco, organizaram os seus piquetes de forma que os esforços dos guardas tivessem o menor impacto possível. Valia tudo, desde abordar os fura-greves na rua para os tentar persuadir a espalhar tachas para furar os pneus dos carros. Em resposta, a GNR transportava nos seus próprios jipes aqueles que queriam fazer os exames, aumentando ainda mais a sua reputação de traidores.


Os traidores, além da reputação, viam a sua identidade ser revelada todos os dias, com cartazes com o seu nome a serem afixados nos jardins da AAC; os finalistas tinham tratamento especial e as suas caricaturas do livro de curso eram fotocopiadas e espalhadas por toda a parte. Não havia como escapar.


Finda a época de exames, a Crise Académica estendeu-se ao desporto-rei, que sempre foi muito querido aos portugueses. A 22 de junho, jogava-se a final da Taça de Portugal, onde a Académica enfrentaria o Benfica, na casa dos encarnados. Este foi, contudo, um jogo atípico: além de não contar com a presença do Presidente da República, ficou marcado por um grande aparato policial e por um mar de capas negras e cartazes de protesto. A Académica saiu derrotada, mas os seus jogadores não deixaram de colocar a capa negra aos ombros, em sinal de luto.


Infelizmente, a revolta e o protesto não foram o suficiente para impedir todos estes estudantes de rumar a África e de vestir a farda portuguesa. Ainda assim, os universitários fizeram-se sempre ouvir e nunca deixaram de gritar contra a guerra e contra o regime, nem na iminência de partir.


Em 1987, a Assembleia da República aprovou a instauração do Dia Nacional do Estudante, para que o dia 24 de março passasse a ser um dia de homenagem aos universitários e à sua luta pela liberdade em Portugal. Mais de 50 anos depois do discurso de Américo Martins, importa manter vivo o espírito de luta da academia, os seus valores e o seu senso de justiça. Além disso, importa ainda relembrar que, apesar da sua coragem, o presidente da AAC nunca caminhou sozinho, da mesma maneira que a academia não se faz apenas de um de nós.


No próximo dia 23 de março, os estudantes voltam a unir-se e a marchar até São Bento. Tal como Américo Martins, pedem para que a sua voz seja ouvida, alertando, entre outras coisas, para as problemáticas do custo de vida em Portugal, para os crescentes problemas de alojamento e para o reforço da Ação Social Escolar. Sob o lema «Até quando vais deixar o muro aumentar? Fim às barreiras no Ensino Superior!», estudantes de variadas instituições concentrar-se-ão às 14:30 na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, de onde caminharão até ao Palácio de São Bento. Entre outras, já subscreveram o manifesto a Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a Associação de Estudantes da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e a Associação de Estudantes do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.


Beatriz Lourenço

Editado por António Santos


Referências:

Agência Lusa, “ENTREVISTA: Crise Académica/50 Anos: O «peço a palavra» foi «no momento rigorosamente certo», Diário de Notícias (2019, Abr 16), https://www.dn.pt/lusa/entrevista-crise-academica50-anos-o-peco-a-palavra-foi-no-momento-rigorosamente-certo----alberto-martins--10800841.html.

Fórum Estudante, “A história do Dia Nacional do Estudante”, Fórum Estudante, atualizado pela última vez a 24 de março de 2022, consultado a 3 de março de 2023, https://forum.pt/estudar/a-historia-do-dia-nacional-do-estudante.

Ferreira, M. L., “As fotos da crise académica de 1969, a luta das «capas negras»”, Observador (2016, Mar 24), https://observador.pt/2016/03/24/crise-1969-as-imagens-luta-capas-negras-estudantes/.

I.B., “Tempo de grevistas e de «traidores»”, Público (1999, Abr 17), https://www.publico.pt/1999/04/17/jornal/tempo-de-grevistas-e-traidores-132223.

[1] Agência Lusa, “ENTREVISTA: Crise Académica/50 Anos: O «peço a palavra» foi «no momento rigorosamente certo» - Alberto Martins”. [2] Ferreira, M. L., “As fotos da crise académica de 1969, a luta das «capas negras»”. [3] http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=Espolio45 [4] I.B., “Tempo de grevistas e «traidores»”

99 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

O Nosso Último Beijo

Aviso: referência a suicídio e automutilação Nota: ler ao som de Ceilings , de Lizzy McAlpine. Ali, com a Eva, o Chris sentia-se em paz....

Our Last Kiss

TW: self arm, suicide Note: read while listening to “ceilings” by Lizzy McAlpine Chris felt at peace, there with Eva. They had been...

Comments


bottom of page