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  • Foto do escritorIone Simões

O que é que faz falta na Faculdade de Letras?

Artigo de opinião


Eu entrei na Faculdade de Letras, em 2021, e o meu primeiro semestre foi muito desencorajador. Sempre soube que a passagem do secundário para o ensino superior seria uma grande mudança, mas ao chegar à FLUL fiquei genuinamente chocada com o que enfrentava. Aos poucos fui-me apercebendo de que não era a mudança do secundário para o ensino superior que era tão complicada, mas sim a do secundário para a FLUL. 


Estudar nesta faculdade é duro: a excessivamente dificultada burocracia; a falta de disponibilização de informações básicas sobre o seu funcionamento; a sobrecarga de testes nas semanas finais; as aulas dadas à pressa pelos professores na tentativa de «enfiar» nos semestres a matéria programada que estava sobredimensionada para o número de aulas previstas; a falta de espaços de convívio; os estudantes a comerem sozinhos nos corredores; os preços altos do monopólio dos bares… os problemas não são invisíveis. 


Estas críticas não faltavam nas conversas com outros estudantes. Os problemas eram apontados, reconhecidos e definidos ostensivamente, mas não passava disso. Sempre achei que a condição visionária dos jovens fazia deles precursores da mudança. Porque é que não havia um movimento estudantil para mudar as coisas? O que é que faltava?  


Nas minhas tentativas para responder a esta pergunta surgiram várias hipóteses. A primeira, uma apatia política absoluta na nossa geração, era assustadora, mas rapidamente desisti dela, porque conheci pessoas que estavam motivadas para exigir mudanças nesta faculdade e vi exemplos de outras nas quais existia um posicionamento reivindicativo estudantil mais forte. Isto levou-me a concluir que o problema era algo que se passava na nossa faculdade a um nível particular. Pensei que se calhar era porque não existe um verdadeiro sentido de comunidade, por diferentes motivos. Um deles, e o mais importante, é a liberdade de escolha das cadeiras opcionais que nos constrangem a sentar-nos ao lado de uma pessoa diferente todos os dias e a ver caras novas a cada semestre, o que dificulta estabelecer relações. 


A segunda hipótese surgiu depois da leitura de um artigo do Público sobre antigos dirigentes estudantis dos anos 90. A «Guerra contra as propinas» foi um momento de grande agitação entre a juventude portuguesa estudantil, mas as condições nas quais eles exigiam os seus direitos eram diferentes das atuais. Começando pelo facto de que os estudantes dos anos 90 eram filhos da geração que fez o 25 de abril, facilitando a manutenção de um laço às conversas ideológicas. Além de que esses estudantes não tinham as pressões económicas que os atuais têm(1). Como é referido no artigo, «o ensino era gratuito e por isso um jovem podia dar-se ao luxo de perder aulas, de perder anos, para se dedicar a tempo inteiro à contestação»(2). Agora, graças à implementação do processo de Bolonha no início dos anos 2000, as licenciaturas passaram de 4 e 5 anos para 3 e 4. Os alunos não têm tempo para se preocupar com participar em manifestações, quando têm trabalhos para fazer e exames para os quais estudar. Há uma necessidade de acabar o curso, para rapidamente entrar no mercado de trabalho e participar economicamente nas despesas familiares que aumentam todos os anos. Não há tempo para tudo. Os «semestres» de três meses da FLUL privam-nos de conhecimentos e prejudicam o nosso desempenho académico. Deixando de lado a não-participação em movimentos estudantis, quais poderão ser as consequências a longo prazo? Tem piorado a qualidade do Ensino Superior? Que geração futura está a ser formada em instituições nas quais tudo é dado à pressa?

Outra das minhas hipóteses era que, em Letras, os alunos não eram politicamente ativos porque não existia uma tradição política forte «como tinha existido em Ciências». Já tinha ouvido este comentário mais do que uma vez e de maneiras diferentes e deixou-me desconcertada porque, para mim, ler textos sobre bivalves e crustáceos fazia pensar menos em problemáticas sociais do que ler a República de Platão. E para pôr à prova essa opção, decidi consultar o arquivo da AEFLUL, onde encontrei tesouros das lutas estudantis de todos os «entas»(3), começando pelos anos 60 (época em que o associativismo estudantil era proibido). Comparei números do passado, época em que havia menos alunos que chegavam ao ensino superior, em que as listas das associações de estudantes ganhavam com 1418 votos(4), em contraste com os deprimentes 184 votos da atualidade. Como são possíveis estes números, quando a percentagem da população portuguesa com formação superior se tem duplicado nas últimas décadas(5)? Confrontei as RGAs descritas no arquivo com as dos alunos atuais que desconhecem o significado dessas siglas. Não é por ser saudosista, mas isto é um claro exemplo de algo que acontecia e já não acontece. Há agora uma falta de participação política dos estudantes em assuntos universitários, o que não indica que eles não sejam politicamente ativos noutros. Contudo, na minha curta experiência de envolvimento nas problemáticas estudantis, tenho reparado que as pessoas presentes nas iniciativas dos movimentos estudantis costumam estar presentes na reivindicação de outros assuntos. A implicação em assuntos políticos é o caminho mais evidente para levar as nossas contestações às pessoas que podem alterar as coisas, além de fornecer um espaço de discussão propício a novas ideias e novas soluções para as nossas problemáticas. 


Eu posso perceber que a política não seja um assunto de particular interesse para a maioria das pessoas. A apatia política é irremediável: há muitas coisas mais divertidas para fazer com o nosso tempo. Mas havendo problemas como os que havia antes, continuo a não perceber qual é o ponto em que as pessoas decidem dizer «chega!/basta!»? Qual é a fronteira do tolerável? Se calhar este texto é mais uma necessidade minha de pensar em voz alta, com a esperança de despertar curiosidades e reflexões similares.


Porque a faculdade marca o início da contribuição dos indivíduos à sociedade, a participação dos jovens na discussão de problemáticas estudantis possibilita o seu empoderamento. Este é o momento em que os jovens passam a ser donos do seu destino e podem participar nele, isto se acreditarem que essa participação trará com ela frutos. Se as pessoas não acreditam que podem mudar as coisas no local circunscrito da universidade, que esperança há para o resto? 


Portanto, num ano de celebração de 50 anos do fim da ditadura e de marcantes acontecimentos políticos internacionais e nacionais, estas reflexões e a necessidade de as ter tornam-se cada vez mais urgentes.


Editado por Maria Rodrigues


(1) Desde 1941 o valor das propinas tinha sido fixado, na quantia de 1200 escudos (equivalente a 5 euros na atualidade). A primeira “Lei das propinas”, aprovada em 1992, visionava alterava o valor progressivamente até chegar ao valor de 200 contos (mil euros) em 1994/1995. (Leiria, I. 2003)

(2)  (Moura, P. 2013)

(3)  Curiosamente, os exemplos de movimentação estudantil não passam dos “entas”. A partir dos anos 2000’s o arquivo começa a ficar esvaziado desses exemplos. 

(4)  (Diário de Notícias. 1976) 

(5)  (Varela, M. 2019) 


Referências bibliográficas:

Leiria, Isabel. (21 de outubro de 2003) “Quatro leis e muita polémica entre os 1200 escudos e a propina actual.” https://www.publico.pt/2003/10/21/jornal/quatro-leis-e-muita-polemica-entre-os-1200-escudos-e-a-propina-actual-206720

Varela, Miguel. ( 28 de fevereiro de 2019) “Processo de Bolonha no ensino superior nacional (2006-2018)” https://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/miguel-varela/detalhe/processo-de-bolonha-no-ensino-superior-nacional-2006-2018

“Faculdade de Letras lista C vence eleições” (5 de fevereiro 1976) Diário de notícias, Lisboa. Arquivo AEFLUL.

Moura, Paulo. (24 de novembro 2013) “Quando a vanguarda esclarecida saiu à rua” https://www.publico.pt/2013/11/24/portugal/noticia/quando-a-vanguarda-esclarecida-saiu-a-rua-1613528


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1 commentaire


mmm
17 mars

Gostei muito da forma como se propuseram hipóteses para tentar explicar o fenómeno da falta de participação dos estudantes universitários na vida política destas instituições. É possível que todas elas, em conjunto, contribuam para explicar este fenómeno, que é bastante generalizado.

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