Pousado o relógio por cima do livro de José, Josefina contava-lhe que a vida é um estalar de asas num dia de muito sol e que o mundo são as mãos em pala sobre os olhos a tentar seguir o voo. Não tardou a sentar-se como se tivesse gasto toda a sua força naquela frase. Na verdade, não a disse: inventou-a José, depois de ver a sua avó a comportar com gestos largos a vida e o mundo, nunca deles sabendo mais do que cem palavras. Lá fora, o sol descia suavemente, tangido de um amarelo-torrado, e tão devagarinho que parecia ter adormecido pelo caminho. Ali, nas terras velhas dos seus avós, o sol tinha pressa em nascer e uma vontade mole em cair; por vezes, murmurava-se que os senhores das grandes terras velhas esforçavam também o céu aos seus anseios para que os rostos dos novos tivessem o tempo lento e maciço dos velhos.
Iniciou-se um belíssimo espetáculo de pontapés ao sono, quando Josefina em frente a José se atirou a uma cadeira mais rasteira do que aquela em que o neto estava sentado e orquestrou com os dedos uma melodia carnavalesca. O dia passava, portanto, vazio: os rodapés das casas azuis, as paredes caiadas e as pálpebras dos olhos de todas pessoas da Aldeia dos Cinquenta Passos desmaiadas até ao chão – tudo junto era a vida de José. Esperava o seu avô Jerónimo, que tinha ido trabalhar para os campos ou para o oceano triste do Alentejo, como lhe dizia. Ouvia, vindo do exterior, um som leve, quase de fumo, que ziguezagueava desde o velho Vale das Figueiras até às laranjeiras semeadas defronte à casa, mas parecia-lhe um choro, como se trouxesse uma brisa húmida, fresca de novidade ou desgosto e que só entre os frutos se segredava o desfecho mágico da carta. A mulher que agora dormia profundamente e cabeceava um sonho qualquer avisara-lhe que as laranjeiras vêm dos ventos que, quer de noite, quer de dia, trazem gente nova na família, por isso nunca se atrevera em tempo algum a assaltar aqueles gomos e a revelar o que só aos seus avós pertencia. Crescia o som mal engenhado proveniente do Vale das Figueiras, picando-lhe os ouvidos como fagulhas projetadas da madeira de sobreiro. Depois de espreitar o relógio de Josefina, José sabia que batidas a cinco da tarde era costume a visita de Cecília para entregar uma dúzia de ovos e, talvez, se lhe mostrasse que já lia como um poeta, espiava-lhe a sorte de receber um beijo na bochecha. Cecília era a filha mais nova dos Ferreirinhas. Espanava uma saia florida e sobre a testa apertava-se-lhe sempre um lenço esverdeado, engrinaldado com as pétalas dos canteiros daqueles que lhe comprassem os ovos ou lhe abrissem a porta para guarida em dias extremamente quentes. De tanto olhar a janela, José já tinha os olhos turvos. Pensava em acordar a avó, mas sabia que caso Cecília finalmente chegasse, teria a oportunidade de escancara-la a sós com versos de senhor menino. Estorricava. Os seus dedos tornavam-se oleosas cerdas, quando se lhe trespassavam pelos fios de cabelo. O cão Tobias surgiu por detrás das laranjeiras e sentou-se de modo a ser visto por José, que estava já empoleirado na janela. Soltou um tímido relincho que logo sobressaltou o rapaz.
– Psiu… Agora não, Tobias.
O cão soergueu-se e caminhou com as patas encurvadas e baixas até à janela. O bicho era envaidecido, cheirava antes de comer e devia julgar-se mais do que gente. Mas ninguém lhe dava a consideração devida, tinha o pelo eriçado, os olhos enviesados e as crianças muitas vezes corriam atrás dele zangadas quando um pedaço de pão caía para a boca errada. No entanto, José era amabilíssimo com Tobias e quando estavam sozinhos até experimentava dizer-lhe coisas que, porventura, só se dizem a um cão.
– A avó está a dormir e eu não tenho nada para te dar. Psiu, Tobias. Vai-te embora!
Tobias não abalava. O menino levantou-se silenciosamente e caminhou em bicos de pés até à cozinha, alegrando o bicho que se arrastava de cócoras para trás com um fio de saliva preso à boca a tentar observar cada movimento do generoso companheiro.
– Toma! Agora abala, vá! – disse José, mas o cão, depois de ver metade de uma carcaça largada ao chão, voltou a relinchar como se nada fosse do seu agrado. – Se a avó acorda, nunca mais recebes nada. Vai-te embora, Tobias!
O cão compreendeu a ordem e, insofrido, empurrou a carcaça até desaparecer da vista de José. Algum tempo depois, batem à porta e ouve-se uma voz muito desperta:
– Vó Josefa, Vô Jerónimo, estou cega! – avisou, acrescentando logo de seguida: – O maldito cão Tobias abocanhou-me a sacola e partiram-se-me os ovos todos! Estou cega! Sem esperança!
Josefina arregalou um olho e depois o outro. Lá de tanto pestanejar abriram-se completamente os dois, mas notou que não via como quem não vê o vermelho que em abril se pinta. O menino assistia a tudo estupefacto; voltou-se para a mulher e percebeu que os seus olhos se haviam afundado numa palidez absurda, num branco descarado. O mistério adensou-se quando a avó volveu a atenção para o lado de José e perguntou:
– Ainda aí estás, meu menino?
– Estou, avó. Estou como estava antes, mesmo aqui.
– Pois, claro. E quem me chamou?
– A Cecília. Está à porta, parece esmorecida e disse que estava cega.
– Deve ser da estrada poeirenta, não deve? – perguntou, com a voz muito fanhosa e atrapalhada.
– Decerto que sim, avó – José bem sabia que não se levantava poeira nenhuma, olhando para a rua tudo se impunha nítido e desnevoado. Por esta altura, o menino pressentia que a avó o queria alheio ao medo, evitando dizer-lhe de forma direta o que se passava, semelhante ao que acontecia com os bácoros, que nunca ouviam da mulher coisa alguma que magoasse ou que os fizesse sentir que mereciam menos do que dormir, em algumas noites, na mesma cama que Josefina e Jerónimo. O menino, conformado com a ideia, perguntou: – Digo-lhe para entrar?
– Diz, claro!
Andando até à porta, oscilavam-lhe as pernas, notava-se intrigado pela vida e pelo mundo, que todos os dias insistiam em pregar-lhe um mar de dúvidas. Queria que viesse a noite para que o avô lhe ensinasse as constelações e, num sopro de imaginação, se apagassem as incertezas, como se apagam as estrelas quando nasce a luz. Olhou novamente para a mulher: tateava os braços da cadeira e a forma das coisas com tanto afinco que sussurrava os seus nomes pela boca cravada de agitação. Uns versos que havia escrito para Cecília não lhe pareciam agora apropriados para contar:
A maior flor do mundo
Caminha azul e sorridente,
E vem de um vale do ocidente.
Decidiu, pois, adiá-los, como um escritor que adia uma obra e se depara sem saber viver. Junto à porta, cismava, de cabeça puxada até ao peito, sentindo a inquietação de Cecília:
Ó tendeira,
Das tuas mãos nasceu
O silêncio da água.
Abrindo a porta:
– Cecília, entra… – encarou a jovem de sacola imunda, de olhos afundados num desespero branco: – A avó espera-te ali, na sala…
– Nem sabia que aqui estavas José. Ajuda-me a entrar.
Os seus olhos estavam agora brilhantes, como se a lucidez se despedisse numa réstia acesa de emoção.
– Estou cega, Vó Josefa. Quando o cão se atirou a mim, ainda no Vale das Figueiras, perdi o sentido da vista… – disse apavorada, sentando-se com a ajuda de José.
– Coitadinha… Não vai isso passar num instante? – atirou Josefa, escondendo o desamparo.
– Digo-lhe mais, isto é a vida a desafiar-me!
– Pobre gaiata. O que falas tu?
– É como lhe digo. Já minha mãe e meu pai me haviam avisado que se não quisesse ir para o campo, teria de ser boa tendeira. Quando souberem, mandam-me chamar… Mas como trabalharei se nem a vejo diante de mim, Vó Josefa.
– Pois é verdade!
O menino tentava ordenar os factos, mas tudo se afigurava uma obra desatinada. A moça chorava e não continha o barulho e Josefa lavava as lágrimas a cada instante que procurava achar o neto na névoa que lhe era o olhar. De modo semelhante, José contemplava vagamente a rua que dá ao Vale das Figueiras, imaginando o trajeto que Cecília tinha percorrido, cega e desnorteada, cambaleando como o Zé Cotovias quando sai da taberna do Júlio Sardas. Brandamente, também José começara a chorar. Escorriam-se-lhe as lágrimas pelo rosto delicado, desolado na expressão. Jurava não ter lido nos livros conto algum que lhe resolvesse o mistério e marejavam-lhe as pálpebras, tão ténues que cabiam todos os detalhes de longas searas e bem esculpidas azinheiras. Descendo a rua, o trilho possível que dá ao Vale das Figueiras, aparecia agora um corpo, esguio, seco e baixo como todos os homens da época. O passo era calmo, dobrado em si mesmo e material apenas quando as sombras se esquivavam.
– Vem aí o teu avô! – afirmou Josefa, mostrando-se tão certa que nem de justificar precisaria.
– É mesmo! Mas afinal a avó consegue…
– Ele hoje não vai entrar… Não quer que o vejam abalar… – replicou a mulher, convulsando a ansiedade em José.
O homem aproximava-se agora das laranjeiras diante das janelas da casa. Abriu a cigarreira e levou um cigarro à boca, notando-se a respiração ofegante das jornadas de trabalho. José, estático como uma estátua de pedra, fitava-o em silêncio e Jerónimo sorriu-lhe. Ouviu-se o cão Tobias a aventurar-se num sobreiral qualquer. O vento morno que se atravessava pela brecha da vidraça amaciava-lhe o ar de aflição, redondo de interrogação. As mulheres pausaram o luto, veladas de uma súbita compaixão e procuravam no espaço as mãos umas das outras. Como mirava José todos os livros das bibliotecas, Jerónimo perseguia atentamente as árvores de fruto, levando-as a murmurar aquele som leve, de fumo. Respirava-se uma fantasia quente, deambulante na despedida. As passas haviam acabado quando Jerónimo se agarrou a cada uma das laranjeiras, abraçando-as apaixonadamente. Nele habitava uma saudade de quem ainda não abalou. De seguida, fitou novamente José, abanou a mão aberta e caminhou com o corpo monótono pelos trilhos que dali se inventavam.
– O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer. – completou Josefa.
Editado por Matilde Mala
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