«Depois de um confronto com a polícia, o jovem Jójó é condenado pelo tribunal a cumprir serviço comunitário num lar de Idosos. Cabe-lhe pintar o quarto de Leo, um velho pugilista que a instituição considera perigoso e mantém numa ala fechada. No início, a revolta e a agressividade de Jójó chocam com a apatia e o mutismo de Leo. A tensão vai-se desfazendo, quando os dois começam a partilhar as suas histórias de vida e ganham o respeito um do outro. Mas será que tudo isto aconteceu realmente? Ou foi apenas mais um dos muitos sonhos de Leo?» – Teatro Aberto, 2022
Fotografias da autoria de Filipe Figueiredo
O jornal O Cola teve o privilégio de assistir ao Ensaio de Imprensa da peça O Coração de um Pugilista, uma versão de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos, que tem como base o texto de Lutz Hübner. Tendo como tema a solidariedade e paixão que nasce do conflito geracional, vemos uma modernização dos costumes e maneirismos das personagens, enquanto se mantém o ar de intemporalidade do original alemão, onde a ação se desenrola numa época não especificada.
A peça está em exibição até 29 de janeiro, quarta e quinta-feira às 19:00, sexta-feira e sábado às 21:30, e domingo às 16:00, na sala vermelha do Teatro Aberto.
A cena abre num quarto de um lar, frio, onde um foco de luz azul ilumina Leo (Miguel Guilherme), que contrasta com o foco vermelho/amarelo de Jójó (Gonçalo Almeida), que entra pelo quarto.
Sarcasticamente entusiástico, Jójó provoca Leo, que não reage e permanece apático às sucessivas tentativas de diálogo por parte do jovem, que parte de forçosamente amigável para brejeiro e violento, esperando algum tipo de reação por parte de Leo. Perante isto, o espectador é relembrado do porquê de Jójó estar a pintar o quarto de um lar: está a fazer serviço comunitário como castigo, não por bondade. Contudo, mais tarde percebemos que Jójó não é tão unidimensional.
Perante a atuação explosiva de Jójó, que insulta e abana a cadeira de rodas do idoso que deveria ajudar, apenas reparamos no olhar absorto de Leo. Mesmo quando Jójó declara o desprezo que tem por velhos, continua impávido e sereno. É apenas no fechar da cena que Leo reage ao derrubar um balde de tinta sobre os sapatos de Jójó, uma provocação calculada que dá a entender que Leo é mais do que aparenta ser.
«Com base no imaginário de um combate de boxe, O Coração de um Pugilista apresenta e debate diversos modos de encarar a vida e lidar com vitórias e derrotas. Quando importa atacar e esquivar? Como continuar a lutar depois de se ter ido ao tapete ou atirado a toalha ao chão? Estratégias de luta, estratégias de vida.» – Teatro Aberto, 2022
Dividido em 3 partes/paredes diferentes, o pequeno palco aproveita o diminuto espaço para se tornar extremamente dinâmico e engenhoso ao auxiliar a narrativa, em vez de servir apenas de suporte estático ao enredo. Deste modo, a parede branca central (o quarto de Leo) é pintada, por Jójó, de azul; o mesmo tom das paredes adjacentes, onde fragmentos (luvas de boxe) do passado de Leo se encontram, literalmente, fossilizados, fundidos nas paredes, momentos cristalizados no tempo. Quando Jójó pinta o quarto, ainda que a relação entre os dois fosse bastante agreste, conseguimos ver os princípios de uma amizade que vai reviver este passado.
O boxe do passado de Leo ressurge pela mão literal e metafórica de Jójó, e passa assim a ser elemento central, agente de mudança, para o futuro dos dois.
Por conseguinte, a peça estrutura-se em torno do boxe, com as sete cenas/dias em que a peça se desenrola semelhantes a rounds dum combate. Tendo o palco como ringue, vemos a dimensão psicológica do boxe como força motora que orienta e toma conta das atitudes das personagens e do enredo.
Quer seja no olhar típico de pugilista de Leo, que segue e estuda atentamente cada movimento de Jójó no primeiro dia em que se conhecem, como no engodo de apenas revelar a sua (relativa) sanidade quando se certifica que aquele jovem a merece, ou até mesmo na agressividade e energia de Jójó que grita, insulta o velho e salta pelo quarto (numa performance que impressiona bastante e chega a ser quase perturbadora), arquétipo do arruaceiro e do pugilista novato e inexperiente (ou a imagem que o público tem dos pugilistas enquanto pessoas agressivas), vemos a presença do combate, do jogo mental, do boxe sempre presente.
Mais que simples agressividade física e verbal, o boxe é, portanto, evidenciado como uma arte subtil. Quando olhamos para um boxeur, o que salta mais à vista são os bíceps que dão força aos punhos que desferem os golpes, ou talvez o peito que auxilia no movimento e costuma ser bem desenvolvido. Contudo, os músculos mais importantes no boxe são aqueles que o oponente não vê: as costas. O movimento rápido de transferência de energia dos latissimus dorsi para os romboides e, de seguida, para o deltoide posterior são o que dá potência ao jab, ao gancho, ao uppercut. É, portanto, o que está escondido que se torna mortífero. De igual modo vemos os dois protagonistas: Leo, escondendo a sua sanidade enquanto se diverte a "testar" um Jójó arrogante e intempestivo, que despreza o velho senil na cadeira de rodas; e o jovem que vê apenas uma pessoa frágil, tanto em mente como em corpo, tomando como verdadeiro apenas o que vê.
Por último, vemos também a mestria de Leo ligada ao boxe enquanto maneira de "desenrolar" toda a vida de Jójó diante da plateia, com leves provocações que geram uma resposta agressiva por parte do adversário, que só o tornam ainda mais vulnerável e os aproximam. Leo provoca, e Jójó, jovem e inexperiente, ataca agressivamente sem reparar na quantidade de aberturas que deixa para Leo explorar. E cedo chega o K.O.
Em suma, O Coração de um Pugilista ao mesmo tempo que reflete uma sociedade fraturada entre gerações que se descredibilizam mutuamente (os jovens por não terem "experiência de vida" e os velhos por "estarem ultrapassados e decadentes"), pega no cliché do confronto geracional, no tropo do jovem desajustado que encontra uma figura paternal que serve de mentor, e desenvolve e aprofunda o tema duma forma diferente, com recurso à, indiscutível, melhor modalidade desportiva para servir de metáfora para as relações interpessoais: o boxe.
Por Gonçalo Counhago
Editado por Rita Magalhães
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