Tiago Correia
Editado por António Santos
De manhã, sinto-me mais eu. De manhã, estou mais perto de Deus.
De manhã, sou mais esperançoso, pois as pressões diárias ainda não assentaram.
Antes que os flagelos do dia-a-dia me dilacerem em mil fragmentos de mim, antes que os lenitivos do sono e manhã seguintes me façam esquecer de que não sei quem sou.
De manhã, como diria o bucólico, “sou um olho transparente”. Um com a natureza, com a alvorada, mas distintivamente eu. O abrir dos olhos ao primeiro despertar traz-me paz, antes de me lembrar de quem sou, antes de me lembrar de que não sei quem sou, antes de procurar algo que me legitime durante a integridade do dia.
De manhã, estou em comunhão com o divino. Estou em íntima cópula com a Criação, com o início das coisas, e em paz com o seu fim. Quando olho pela janela, assisto ao início do tempo, ao pó que hoje me concatena. Estou resoluto.
Antes de quebrar jejum, antes de beber a primeira bica, antes de fumar o cigarro, antes de ouvir o primeiro “bom dia”, eu existo, a penumbra não assentou. Antes de ser uma colagem dos demais, antes da alteridade, sou o meu eu menos desonesto.
Antes de desdobrar o jornal e aprender sobre o deslizamento de terras em Manila, sobre a fila de fome no banlieue ou sobre o corredor de tendas na Morais Soares. De manhã, antes que o levantar me confine à mediocridade generalizada.
Antes que a memória me devolva à insensibilidade do dia. De manhã, cheiro magenta, turquesa e todos os afins tons que a treva da tarde assalta.
De manhã, antes de ser de plástico, sou de luz. O limiar da carne não me afoga. Ainda não me expliquei porque é que sou bom, não precisei.
De manhã, antes de olhar ao espelho e não ver um eco, antes do meu reflexo ser uma amálgama de lascas– sou eu.
Antes de recordar que tudo o que me revolve é falso, eu incluso. Todos os dias renasço da vigília e revejo-me, ainda que por breve.
Até amanhã.
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